Mais uma noite em SP

Sofia Py
2 min readJun 19, 2023

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Ele está voltando para casa, depois de um dia longo e monótono de trabalho. E ele sabe disso, mas pensar sobre o assunto o estressa — e no tempo livre ele prefere descansar.

Eles estão no segundo encontro e logo de cara já sabem que não são almas gêmeas. Ainda não transaram mas esta noite vai acontecer. Ele vai gozar e ela não. Mas eles vão ficar juntos por algum tempo porque ambos são carentes e inseguros. Tudo vai acabar quando ele der um tapa na cara dela durante o sexo.

Ela, medrosa, espera o uber chegar. Nunca pegou carona do aplicativo sozinha porque prefere táxis, mas se rendeu porque é sexta-feira à noite e ela precisa chegar na rodoviária. O motorista vai puxar um papo, mas ela vai cortar logo de cara.

Ele está bebendo pela primeira vez em 13 anos. Assim como os outros dias, se sente extremamente solitário, mas hoje foi diferente. Diferente porque ele decidiu parar de continuar sóbrio. Ele tem saudades da ex-mulher, dos filhos e, principalmente, de um porre com os amigos.

Ele sempre foi a ovelha negra da família. Isso se comprovou quando ele fazia desenhos macabros quando criança. Isso se comprovou quando ele começou a pintar as unhas. Ou quando ele decidiu fazer artes visuais na faculdade. Ou quando ele começou a usar drogas. Ou quando ele foi expulso de casa e teve que morar na rua. Hoje ele continua a pintar, continua a usar drogas e ainda mora na rua, e seus amigos o consideram mais um deles.

Ela se apressa para voltar para casa. Antes, morar no centro era sinônimo de chique. Hoje, não. Ela tem medo dos ladrões. Tem nojo de pobre. Se irrita nas eleições e, sinceramente, mal pode esperar para morrer e ir pro céu.

Ele senta do meu lado, mesmo os outros bancos estando vagos. Ele começa a me olhar ofegante. Eu paro de criar personalidades para as pessoas que eu vejo na minha habitua rota do 875A-10 passando pelo centro de São Paulo.

Ele continua a olhar para as minhas pernas descobertas e ter pensamentos eróticos. Não é preciso estar na cabeça dele para saber exatamente o que estava imaginando.

Eu mando mensagem pro meu namorado. E pras minhas amigas. E pra minha irmã. Eu olho a rota do ônibus e vejo quanto tempo falta até o meu destino.

Ele não se incomoda que eu me incomode.

Eu fico o tempo todo evitando contato visual. Em choque, sem nem ter forças para sentar em outro lugar.

Ele se delicia.

Eu morro.

Mais uma noite em São Paulo. Mais uma noite como mulher.

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